Nascente e pequeno trecho ainda são preservados no Jardim Botânico. Mas quando deixa o parque, esgoto e canalização destroem suas águas.
Em frente ao Monumento da Independência, no bairro do Ipiranga, em São Paulo, um cheiro podre toma o ar. Quem se aproxima do local onde D. Pedro I deu o grito da nossa “libertação” para ver de perto o famoso riacho citado no hino nacional, encontra um cenário triste: sujeira, mau cheiro e meninos fumando crack no que sobrou de suas “margens plácidas”. Cento e noventa anos depois da Independência, esse é o estado do riacho do Ipiranga em seu lugar mais nobre.
Segundo a Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb), a qualidade da água deste ponto específico do rio foi avaliada como “péssima” em medições feitas em janeiro, em maio e em julho deste ano. Em todos os seus 9,5 km de extensão pela cidade, só há um ponto em que ele é realmente limpo: em sua nascente, no Jardim Botânico.
Lá, uma trilha de 20 minutos construída no meio de uma reserva da mata atlântica leva a uma das três fontes que formam o rio. Limpo e com peixes, ele segue a céu aberto até o final do parque, quando encontra outros dois córregos na cidade e começa a receber o esgoto e a sujeira que o poluem.
“Depois da descanalização, a visitação [no Jardim Botânico] aumentou bastante”, conta Tânia Cerati, diretora do núcleo de pesquisa em educação do Instituto de Botânica. Quando ela chegou ao Jardim, há 20 anos, o riacho era tampado com um concreto, obra provavelmente do começo do século XX. O acesso à uma de suas nascentes era um projeto de Tânia, concretizado em 2006. Dois anos depois, ele foi todo revitalizado, e hoje o paisagismo do parque acompanha suas águas. “Acho que aqui é um bom exemplo de que é possível restaurar a natureza e com isso compensar vários erros que cometemos no passado”, diz ela.
Imagem de negativo de vidro mostra o riacho do Ipiranga na região onde hoje é o Monumento à Independência. No detalhe, uma mulher lava roupas. Não há informações sobre a data exata da imagem, mas sabe-se que foi feita antes das obras do Monumento, na década de 1920 (Foto: Acervo do Museu Paulista da USP/José Rosael / Hélio Nobre)
'Supervalorizado'
O Ipiranga tem, e sempre teve, um volume pequeno de água - e por isso é comumente chamado de riacho. Seu uso na história do Brasil nunca foi muito relevante, e sua fama se deve principalmente ao fato de estar ligado à Independência do país. Essa tese foi defendida na dissertação de mestrado do historiador e pesquisador do Arquivo Nacional Pablo Endrigo.
Ao G1, ele disse que o riacho era inexpressivo até a Independência e que a primeira menção a ele nos documentos oficiais data de 1773 - uma tentativa de canalização que nunca aconteceu. "O uso do rio era pelos tropeiros em viagens entre São Paulo e o porto de Santos, passando pela Serra do Mar. Usavam [o rio] para beber água, lavar as botas. [...] O Ipiranga esteve em uma região praticamente desabitada. Ele é mais valorizado do que deveria pelo seu tamanho e uso."
Inscrição de apologia à maconha é vista em uma das pontes que sobrepõem o riacho em frente ao Monumento da Independência, em agosto de 2012 (Foto: Giovana Sanchez/G1)
Segundo o historiador, a fama do rio foi crescendo com o hino nacional e com a pintura do quadro de Pedro Américo - que, ao retratar a Independência, faz um desvio topográfico deixando o riacho à frente de D. Pedro I, quando na realidade ele estaria atrás. Depois, veio a construção do Museu e do Monumento à Independência."Aí você tem a associação final: a imagem, o hino e a situação histórica."
Projetos (e paulistanos) frustrados
Embora não seja de muito uso pela cidade, a não ser para receber dejetos, o riacho tem um papel histórico para o país. O fato de estar poluído há tantos anos irrita muitos moradores da capital, que já tentaram se mobilizar para mudar a situação.
O professor de engenharia da USP Sadalla Domingos é um dos autores de um projeto de limpeza e revitalização do riacho, que cria um parque linear desde a Rodovia dos Imigrantes até o Parque da Independência. Sadalla apresentou o projeto à Prefeitura da cidade em 2005, mas não recebeu nenhuma resposta. Segundo ele, falta vontade política.
"Como é possível que um símbolo histórico do Brasil tenha chegado a este grau de poluição? Além disso, qual é a expectativa em relação ao Riacho do Ipiranga e a todos os outros rios, e por que não ampliar a questão: qual é o ambiente de cidade que desejamos?", questiona o professor, indignado.
Outro entusiasta do projeto, o professor de direito ambiental da PUC Guilherme José Purvin criou um fórum de debates sobre uma possível revitalização do Riacho e a criação de um parque ao seu redor. "O rio está morto, completamente morto. Se você for na [Avenida Dr] Ricardo Jaffet, aquilo está num estado deplorável. [...] Acho meio vergonhoso. Uma professora leva os alunos para conhecer o lugar da independência e é uma região que tem desmanche e motel", diz ele.
Professor Domingos: 'Qual é o ambiente de cidade que desejamos?' (Foto: Giovana Sanchez/G1)
A reportagem do G1 percorreu o trajeto do riacho, da nascente até o desague, no rio Tamanduateí, e encontrou sujeira e mal cheiro em todo o caminho - a partir da saída do Jardim Botânico. Em três dias diferentes, pôde ver jovens usavando drogas nas magens que ficam em frente ao Monumento da Independência.
Procurada pelo G1, a Prefeitura de São Paulo informou que desde 1986 foram realizadas 12 obras na região, que contribuíram para diminuir o problema das enchentes. As últimas obras quase dobraram a vazão do córrego e aumentaram de 9 para 13 metros sua largura. "Além disso, as galerias e o sistema de drenagem foram substituídos e ampliados, aumentando o fluxo de escoamento da água", dizia a nota. As Subprefeituras Ipiranga e Vila Mariana também informam que a limpeza no córrego do Ipiranga é realizada mensalmente de forma manual e, em alguns trechos, com ajuda de máquinas.
A Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) informa que concluiu, em julho deste ano, uma obra na região - parte da terceira fase do Projeto Tietê. Segundo a assessoria de imprensa do órgão, os investimentos foram de R$ 51,6 milhões e permitiram que 380 litros de esgoto por segundo vindos dos bairros Ipiranga, Vila Mariana, Saúde, Bosque da Saúde, Cursino, Jabaquara e Americanópolis seguissem para tratamento na estação de Barueri.
Ainda de acordo com a Sabesp, as medições feitas desde o término da obra mostram uma melhoria na qualidade da água do riacho do Ipiranga. No entanto, o último resultado da coleta feita pela Cetesb, de julho, mantém a indicação de qualidade "péssima".
Futuro
"O riacho do Ipiranga pode e deve ser recuperado como uma prioridade entre todos os rios da cidade. [...] Isto é renaturalização de corpos d'água em áreas urbanas, uma tendência em todos os países: rios são despoluidos e destampados pelo menos em alguns trechos que permitam aos cidadãos perceber que tem um rio sob seus prédios, rodas e pés. É aqui que entra a política não só como interpretação do momento, mas como intuição, uma premonição até, para tomar uma decisão hoje como antecipação de uma demanda que será inevitável e muito mais cara ou até impossível [no futuro]", explica o professor Sadalla.
Ele termina a entrevista expressando um desejo, quase uma profecia, em nome de muitos brasileiros: "Antecipemos o início das programações do bicentenário da Independência e iniciemos no Ipiranga a limpeza de todas os nossas águas."
Fim de tarde de agosto em frente ao Monumento da Independência, no bairro do Ipiranga Foto: Giovana Sanchez/G1)
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